sexta-feira, 17 de setembro de 2010

EXPOSIÇÃO - A ARTE DE VIVER


Um mergulho pelo pensamento humano, por caminhos abstractos, por lugares onde a imaginação é infinita, onde o tempo pára e a luz explode em sinfonia com o espaço. Um lugar onde tudo é possível, desde encarnar personagens e mentes, representar pela escrita ou apenas dialogar. Basta ter forças para mergulhar em… águas profundas.


Este é o João. Empregado de mesa, nasceu numa família de classe média, sem grandes futuros. O seu sonho era ser encenador, mas a vida não lhe permitiu. Lugares errados, tempos errados, planos errados, pessoas erradas… tudo na vida de João foi um erro. Agora, com 65 anos, velho, com a vida preenchida, mas cheia de espaços vazios, acompanhado por um senhor que não se recorda, caminha lentamente. O céu estrelado procura uma lua inexistente, mergulhada nas trevas que cobrem o manto azul-escuro lá para sudeste. O caminhar de João mostra receio e um pouco de ansiedade. Não sabe onde está nem como foi ali parar, mas também não quer saber. Sente como se uma alma o estivesse a empurrar. Sentia um sono miserável e não tinha uma cama para dormir. Ao longo da sua vida sem brilho andou com várias raparigas, mas nenhuma delas preencheu os seus requisitos. Não teve um amor puro ou um amor forte, capaz de partir horizontes em mil bocados, capaz de colocar em todas as pessoas um sorriso perfeito, capaz de tornar os dias chuvosos em dias de Verão arábico. Nem na cama teve o prazer perfeito. Mas elas gostavam. Gostavam de levar por trás, pela frente, por cima, por baixo… gostavam de serem possuídas por um homem cuja tristeza já lhe cobria a base do seu rosto. Odiava os seus pais e odiou a sua última mulher, com quem tivera 2 lindos filhos: a filha que não sabia o que era a felicidade e metera-se com um tarado sexual que mais tarde fora preso por pedofilia; o filho, fugira de casa com o namorado, à procura de novas sensações. Tinha João 55 anos. Até lá, a sua mulher Joana continuava a meter-se com o colega de trabalho, tentando dar brilho à sua rotina!

E ali estava ele, junto a um homem um pouco corcunda.

“Eu sou o teu anjo da guarda João!”, exclamou vivamente o velho. Os seus olhos castanhos brilhavam como diamantes!

“Eu cá não preciso de um velho panasca que me defenda!”. Não queria ser rude, mas o seu machismo extremo, por vezes, tornava-se quase obsessivo, como se fosse uma droga.

“Aqui tudo é mais sereno, não vês? Tenta abrir a tua mente podre que tinhas lá em baixo!”. João riu-se como uma criança quando vê um pobre mendigo a cair na rua. Era um riso maquiavélico, sem personalidade. Era um riso triste e desconfortante.

“Lá em baixo? Que merda é esta?”. De machismo passou-se para a ira.

“Basta olhares para o edifício que está aí à tua frente. Entra, com muita calma e concentra-te no máximo possível! Eu tenho a certeza que vais adorar. A escolha vai ser tua. No fim, de acordo com o estado da tua mente, quando abrires a porta de saída, a paisagem mudará… para melhor ou para pior!” O velho estava radiante e nos seus olhos via-se um brilho único, como de um homem apaixonado. “No fim, explicar-te-ei tudo, João!”

João olhou, tentou analisar os factos: das duas uma, ou estava num sonho completamente sem graça, ou então alguém o drogara com algo muito forte. Mas, sem explicar a sua atitude entrou no edifício. A divisão era pequena: apenas havia uma parede branca, uma porta e um bilhete no chão. Curioso, não hesitou em ler. Desdobrou o papel e podia ler as letras grandes em harmonia: “Exposição – A arte de viver”. “Como se a vida fosse uma arte!”, pensou desanimado.

Abriu a porta e os olhos chocaram com uma grande divisão com alguns quadros, com fotos muito pequenas. Não havia problema: por uma razão que nem ele próprio conseguia explicar, encontrara uma lupa no bolso das calças. Correu para o primeiro em que estava assinalado “I: Nascimento”. O quadro mostrava um bebé, recém-nascido, nos braços de uma mãe a chorar de felicidade. A chorar por ter descoberto um código dos milhares do cofre da vida: o fruto da vida. O quadro tinha uma legenda: “O nascimento de um rapaz com um futuro risonho. Um rapaz chamado João.” Nada mais. João estava de boca aberta: “Isto só pode ser um apanhado!” Mas sentia-se melhor ao olhar para a obra. Como estava tão bem pintada. Quase que se conseguia sentir a paixão pela arte de quem pintou o quadro. João tentou lembrar-se das suas fotos de bebé e, visualizando com maior detalhe, reparou que o hospital da pintura era parecido com o da foto. E continuou a analisar a exposição. O segundo quadro tinha o título de “II – Família”. E as cores formavam uma família, à mesa, numa cozinha não muito vistosa, mas humildemente construída e minimamente boa para comer o pão-nosso de cada dia. Mas João não reparou propriamente na mescla de cores que manchavam o quadro. Ele reparou na família. E sentiu na sua alma, nos poros da sua pele, no coração do seu ser, o sorriso da mãe, a olhar para o filho a comer. A felicidade dela em saber que o filho poderia ter sempre comida na mesa. Na legenda podia-se ler: “Quando começaste a comer com talheres, João…”. Na pintura podia ver que o pai, também estava a sorrir, embora com um peso nos olhos. Era o seu pai, sem sombra de dúvida. E ali estava a criança, a olhar para o tecto, como se estivesse a fazer a pergunta retórica mais comum na sua idade: “O que é que eu vou ser quando for grande?”. João sorriu.

Continuando, olhou para o terceiro quadro: “III – Amor” e viu um jovem, aparentemente com 15 anos, de mão dada com uma rapariga muito bela. Estavam os dois a sorrir profundamente, como se estivessem a piscar o olho à sua alma. Era um amor puro, espiritual, humano. A verdadeira razão de ser. A rapariga era parecida com a Andreia, que lhe pedira em namoro aos 15 anos e ele recusara. Ela era uma rapariga honesta, humilde, acreditando no amor ingénuo e meigo. “Pensando bem, se calhar é mesmo ela”. E ficou maravilhado com o quadro. Atrás deles, um homem de fato e chapéu acenava, também ele sorrindo. E a legenda era simples: “O teu primeiro amor.” “Mas que amor? Nunca amei ninguém na minha vida… na minha miserável vida! Nunca gostei deste pãozinho sem sal, porque raio alguém ia pintar isto?” Sentiu-se angustiado, deveras angustiado. Já não tinha vontade de ver os quadros restantes. Pensou em Andreia: bem, mas que bela que ela era. Ele é que era um pãozinho sem sal ao não ter aceitado o amor da rapariga e ter-se metido debaixo da pega da vizinha. Ele é que era um pãozinho sem sal ao ter deixado de falar para a rapariga que o amava e ter-se envolvido com a pega da amiga da pega da vizinha. Ele é que era um pãozinho sem sal ao ter esquecido o amor puro da Andreia e ter-se metido com a pega da irmã da pega da amiga da pega da vizinha! Que tristeza. Se ao menos pudesse ter mudado…


Avançou para o quarto quadro: “IV- Profissão” e viu um homem de 25 anos, num auditório e falar com várias pessoas, num cenário. Parecia teatro e parecia que ele estava a encenar uma história. Reparou na legenda: “Tu, encenador, a fazer a peça da tua vida!” João quase que explodira. Mas começou a desabrochar um lado mais compreensivo do seu ser. “Já percebi! Isto é, sem dúvida, a minha vida perfeita, a minha vida e o meu sonho interligados!”. Viu que Andreia pintada estava numa das cadeiras do auditório… com uma menina e com um menino, aparentemente com três anos de idade. Estavam todos a sorrir, um sorriso bem acolhedor, daqueles que valem mais que mil abraços. João olhou para si retratado: não era ele. Fisicamente sim, mas, no quadro, vê-se um homem com convicção, com personalidade, a carregar com prazer o fardo da felicidade. A carregar com muita força. Com tanta força que podia fazer mal às costas. Prosseguiu para o quinto e último quadro: “V- Vida” e viu um homem velho, de 65 anos, na sua fase terminal. Parecia estar a contar os seus últimos respiros. Ao seu lado estava Andreia e os seus filhos, já adultos. Estavam com um sorriso angustiado, de despedida. João estava com o mesmo sorriso. Na mesa-de-cabeceira do quarto estava um objecto de ouro, com um texto: “Para o melhor encenador do mundo – João, 9 de Setembro de 2009”. Era um prémio, um reconhecimento do seu admirável trabalho.

João estava a chorar, de alegria. A legenda deste quadro dizia: “As escolhas certas”. As luzes apagaram-se automaticamente. João já não sentia medo, raiva… já não sentia o seu lado agressivo e selvagem. Sentia-se leve, sem nada na sua cabeça. Sentia a mente limpa. Sentia-se feliz. Podia ter tido aquela vida, sem dúvida. Podia ter amado, sem dúvida. Podia ter sido encenador, sem dúvida. Podia ter tido dois filhos maravilhosos, sem dúvida. Em vez disso, teve uma vida de vícios, de podridão, de complexos humanos que não nos deixam viver. De manias de grandezas, de ódio perante o próximo. O seu objectivo não foi ser feliz, amar as pessoas que o rodeavam. O seu objectivo foi ter um corpo atlético para poder engatar e papar umas quantas. O seu objectivo não foi viver, o seu objectivo foi ser ele o espectador de um corpo a caminhar para a perdição. Tanto que deixou por dizer e fazer. Agora já se lembrava: do turno da noite do restaurante em que trabalhava. Do assalto. Da arma apontada à sua cabeça. Do tiro. As luzes voltaram a acender e do nada apareceu um novo quadro. “Recomeço”: nele estava representado um homem corcunda a falar com outro homem. João reparou que os homens eram simplesmente iguaizinhos, apenas um tinha um olhar feliz, confiante e com personalidade e o outro tinha um olhar pesado, angustiado, podre. A legenda dizia: “Não tenhas saudades do que não viveste. Tem saudades do que falta para viver.”

João sorriu, mas um sorriso profundo, vindo da sua alma. E foi em direcção à porta de saída, para se encontrar com o homem corcunda, o outro João. Abriu e não viu ninguém. Viu apenas… luz.

THE END

Música da semana: Jon Brion "Little Person"



by Mergulhador de Águas Profundas

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