segunda-feira, 23 de agosto de 2010

A BICICLETA


[Céu] Hoje ofereceram-me uma bicicleta. Usada, mas quase nova. Com cores garridas a combinarem com a minha camisa, cor do “arco-íris”. E tinha um desenho que mostrava um homem a subir um arco-íris, a sorrir, com as pupilas bastante abertas. Consigo ver que está mesmo feliz e o sorriso é tão natural como de uma criança quando vê um pai a fazer caretas. O seu fato preto conduz com o chapéu. Fiquei a analisar o desenho com um interesse especial. Lá fora as nuvens já rondavam a estrela mais pequena do Sistema Solar, com um olhar ansioso, à espera de algo. Estava numa despensa, à espera do fim do mundo! Mas adorava a bicicleta. Não sei quem me ofereceu, apenas vi o objecto hoje de manhã quando fui ver o correio, parado, a olhar para mim. E porque fui ver o correio se ninguém me escreve? Ninguém perde o seu tempo a fazer longas caminhadas pelos terrenos da mente. Ou perde? Não sei. Só quero saber da minha bicicleta, da minha única bicicleta. Não interessa se é boa ou má, é apenas a minha bicicleta. O homem continuava a sorrir. E foi então que reparei na cesta que trazia. Nela estava algo embrulhado. Não abri… não me interessa. O homem não sabia o que havia para lá do arco-íris e, no entanto, mostrava-se feliz. Mas reparei que o sorriso era um pouco forçado. O homem, no fundo, sabia que o seu destino estava traçado. E o olhar… notava-se algo no olhar. Fiquei curioso com o arco-íris. Mas não poderia obter qualquer informação acerca dele. Lá fora, as nuvens já cobriam o sol.

[Terra] Como era homem para te dar a minha bicicleta… lembro-me de cada ínfimo momento que passámos. Desde tu, comigo, nesta despensa, os nossos corpos colados, a saborear cada segundo do tempo, cada chama do nosso corpo, a recolhermos as nossas glórias. Já te disse que tem uma campainha que toca? É um som esquisito, mas soa bem. Soa como um pássaro, a ver uma bela paisagem num pequeno galho. A sentir uma pequena brisa a roçar no seu pêlo genuíno. Quando o seu som ingénuo perfura o silêncio dos campos e encaixa na luz de um sol fraco, prestes a deitar-se ao longo de um mar azul “cor do céu” que se “cola” ao horizonte. Eu penso que esta campainha que toca é a batidas do seu coração, do coração da minha bicicleta. Tu és o tipo de pessoa que eu conseguiria dar tudo… tudo que quisesses. Reparo agora numa coisa: o homem está com cara de sério. E a minha bicicleta começa a ter vestígios de ferrugem. Apercebo-me que o meu bem-estar já é falso. Mas não me sinto triste. Sinto-me vazio. A despensa está mais pequena. As nuvens que cobrem o sol aparentam ter uma cor acinzentada. E o meu sentimento pela bicicleta já não é o mesmo que antes. Não é desta que abro o embrulho. Ouço vento lá fora, mas não tenho medo. Para quê ter medo do fim? É normal a mente estar numa constante luta. Criei alguém dentro de mim, é certo. Será o homem do arco-íris. Quem é ele? O que quer?

[Inferno] Neste momento vivo apenas de memórias. Não devia, mas o homem do arco-íris não me deixa sair delas. De ti, apenas me lembro de estares calada durante um dia, sem falares comigo, depois de uma discussão ardente. Tentei tocar o sino da bicicleta mas fez um barulho esquisito, como se fosse um pequeno sufoco de um rato, na sua toca, preocupado com o gato, cheio de baba, à espera de caçá-lo. A parte de trás da bicicleta estava cheia de ferrugem e a roda estava completamente vazia. Será que estava com dificuldades em respirar? Pobre bicicleta. Já não consigo sentir nada pela sua beleza. As cores já estão fracas e o homem já não sorri, chora. Chora como uma criança, quando sente os primeiros suspiros da Terra. O que era feito do homem cheio de confiança? Já não existe nenhum arco-íris, mas sim umas escadas podres que se dirigem até a uma nuvem vermelha. Ao lado está escuro, tudo com uma cor preta acinzentada. Lá fora, já não há sol, apenas um céu com nuvens cinzentas escuras. Neste momento, vejo dois olhos a olharem para mim, olhos pretos, cujas pupilas são difíceis de reparar. Comecei a chorar. Já não me consigo lembrar de ti, apenas lembro-me das formas do teu corpo, mas sinto que estás a fugir da minha mente como uma onda foge do horizonte numa noite de tempestade, à espera de tocar na areia fina, à espera de ser aconchegada. Eu sou essa onda.

De repente, ouço uma trovoada horripilante. Fiquei surdo e senti lágrimas a escorrerem-me pela face. Já não sei quem sou! Já não me lembro de nada. Olho para fora e vejo um céu negro cheio de relâmpagos. Já não vejo relva, vejo terra seca e já não vejo olhos a olhar para mim, mas um vulto com um chacal, prestes a comer-me. A bicicleta está podre, já não tem cesta, já não tem sino, está toda enferrujada, sem pneus, apenas com um desenho de um homem nu, deitado, morto, com nada à sua volta, apenas uma tinta branca. O envelope estava intacto. Fiquei com medo até que ouvi uma explosão durante milésimas de segundo até acabar deitado no chão como o homem.

[Céu, Terra, Inferno] Acordei. Olhei à minha volta e estava no meu quarto: como estava um sol radiante hoje. Era o dia em que me ia encontrar contigo. Ao sair de casa vi a minha prenda de anos, a prenda que me ofereceste… Uma bicicleta e um fato preto e um chapéu. Reparei que não era muito bonita, mas tinha um desenho que me despertou. Estava um rapaz com uma camisa da cor do arco-íris, numa despensa à espera de algo. Parecia estar a abrir um envelope. E consegui ler o que estava escrito: “Life is just a mirror, and what you see out there, you must first see inside of you. (Wally Amos)”

THE END

Música da semana: Pink Floyd “Bike”


by Mergulhador de Águas Profundas

2 comentários:

João Pedro Cordeiro disse...

Muito, muito bom. Adorei. E fez-me apetecer ouvir o Alchemy Index de Thrice.

omergulhador disse...

Obrigado xKORDSx, ao escrever este texto tive algumas influências como Syd Barrett e o mundo da droga LSD, assim como um dos meus escritores favoritos, Charlie Kaufman. Fui ouvir a música, muito bela, dava uma boa banda sonora para o texto ;). Obrigado, cumprimentos,

Mergulhador de Águas Profundas